quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

ANTES QUE ELAS CRESÇAM.



AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA. ANTES QUE ELAS CRESÇAM. 

Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.É que as
crianças  crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e
pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a
inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os
estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das
estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com
alardeada arrogância. Mas não crescem todos os dias, de igual maneira;
crescem, de repente. Um dia se assentam perto de você no terraço e
dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais
trocar as fraldas daquela criatura. Onde e como andou crescendo aquela
danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre
a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de
aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do
maternal? Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e
desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca,
esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos
pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins,
cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno
cio, lindas potrancas. Entre hambúrgueres e refrigerantes nas
esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas
mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na
cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não
tem jeito, é o emblema da geração. Pois ali estamos, depois do
primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou
intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica
e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e
amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da
ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como
redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros. Há um
período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos. Longe
já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um
impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das
discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o
tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás
e passaram  para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta
dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa
narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no
apartamento dela. Deveríamos ter ido mais  vezes à cama delas ao
anoitecer para ouvir  sua alma respirando conversas e confidências
entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele
quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não,
não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para
ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes
compramos todos os sorvetes e roupas merecidas. Elas cresceram sem que
esgotássemos nelas todo o nosso afeto. No princípio  subiam a serra ou
iam à casa de  praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos,
natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do
carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches
infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo  com
os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível
deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio
dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos.
Agora é hora de os pais na montanha  terem a solidão que queriam, mas,
de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes. O jeito é
esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho
ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode
morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem
tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de
reeditar o nosso afeto. Por isso, é necessário fazer alguma coisa a
mais, antes que elas cresçam.

Um comentário:

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